sexta-feira, 28 de junho de 2019

Ainda sobre escritos antigos:

Os meus demónios ainda dormem debaixo da minha pele.
Apareceram esta noite enquanto dormia sob a ilusão de uma felicidade plena e inalterável. Esqueço-me que a vida não me destinou a esse estado inatingível. Faz questão de me mostrar que o meu fado é a solidão e a tristeza. São esses que me fazem escrever, que me fazem amar, mas que também me fazem lembrar que não sou amável.
Amo terna e calmamente.
Abraço rosas cheias de espinhos e as feridas não saram.
Preciso de solidão agora.
Deixem-me sozinha.
Deixem-me compreender o porquê da minha solidão me acompanhar eternamente.
Neste vasculhar de palavras por antigos cadernos, encontrei um texto que escrevi umas semanas antes de partir para a Alemanha.

Não sinto nada hoje.
Daqui a umas semanas, os meus pés pisarão outro chão, o meu olfato conhecerá o cheiro do Reno e desligar-se-á do Tejo, e os meus olhos não voltarão a cruzar-se com os teus. Serei outra, noutro espaço, noutra pele.
Terei muito frio.
Derramarei centenas de lágrimas. De saudade, de nostalgia, de sentimentos incógnitos que não saberei definir.
Porque estou já a criar hipóteses do que vai acontecer, e criar cenários hipotéticos na minha cabeça? Talvez por me conhecer demasiado bem. Ou por não me conhecer nada bem e necessito de criar já caminhos por onde pisar e não me perder por atalhos. Mas eu preciso de me perder.
Tirei o tapete sob os meus pés e pisei as paredes ásperas e frias, procurei calor na tua pele quente e fugidia.
Mas não me encontrei em ti. Encontrei-me quanto te procurava.
Sorri, chorei, senti vazio, caí em abismos. Senti tanta coisa dentro deste peito, tantas sensações para as quais não encontro palavras para lhes dar forma.
Há estados para os quais ainda não se inventaram palavras.

Memórias de um Verão distante

Estava a folhear o meu caderno do verão passado e encontrei alguns textos que tanto me são familiares como estranhos. É sempre uma viagem interessante ler as palavras escritas por nós num passado que nos parece próximo, porém, tão distante. Irei partilhar aqui alguns desses textos.


Não sei o que procuro. Tudo me parece tremendamente ilusório. Os dias passam e estranho-me ao espelho.
Hoje sinto-me sozinha.
Os meus pais e o meu irmão dormem.
Oiço Schubert para não ouvir a televisão dos vizinhos.
O mar está perto, mas não o suficiente para ouvir as ondas.
Quando mergulhei, hoje, numa onda alta, desejei que me levasse consigo. Sempre desejei ser levada pelo mar, até ficar sal. Não desejo morrer, mas sim ter uma morte poética.
Lembro-me de estar algures na Costa Vicentina, sentada sobre uma falésia, a desenhar as ondas a embaterem nas rochas. E pensei, que morte poética seria, o meu corpo dançar por entre as ondas.
Mas quero agarrar-me tanto à vida.
Há nasceres e pores do sol todos os dias, contudo, surpreendem-me sempre, levando-me quase às lágrimas de tamanha beleza.
Recordo agora uma pequena paixão deste verão, de cabelos de ouro e olhos vindos do mar, que me disse que nunca pára de ver a beleza, de a procurar incessantemente.
Pergunto-me onde estará ele agora. Se vive como dizia querer viver. Sei que eu não vivo como lhe disse que queria viver.
Pergunto-me onde estás, doce andaluz, e se me desejas olhar nos olhos como eu desejo olhar os teus. Não busco beleza em mim no teu olhar. Não sei o que quero de ti. Acho que finalmente não desejo algo de alguém. Apenas que nunca deixes de amar a vida como aparentas amar. Espero abraçar-te um dia e não me queiras largar.
Acho que estarei sempre perdida, sabes? Tento encontrar-me na escrita, na pintura, no desenho, nos livros que leio, na poesia, na dança. Tudo me escapa. Tudo é um nada que me parece tudo. Um reflexo do nada, esse nada que sou eu. Andei sempre nas nuvens. Sempre sem chão firme.
Como eu te queria ter no meu regaço e passar os dedos no teu longo cabelo. Passar o meu dedo indicador pela cana do teu nariz, por entre os olhares, até adormeceres, beijar-te a testa e adormecer nesta calma. Como eu queria cozinhar para ti, ter-te por baixo dos meus lençóis e ver o sol nascer depois de ambos nascermos novamente. Imaginei tanta coisa. Criei tantas imagens na minha cabeça, guardei tanto amor no meu peito.
Tento sempre compreender as almas que pousam no meu espírito. Tento amá-las até o meu coração não aguentar mais.
Agora não te quero dar mais o meu tempo. Não conseguirei pousar a palma da minha mão sobre a tua suave face novamente. Não quero que toques mais nos meus livros e na minha anca. Já não te consigo dar mais da minha alma. Agora és um fantasma tão real, e só quero que pares de me assombrar.
Vou-me embora, meu amor.
Mesmo que a minha caixa torácica perca as forças longe de ti, as minhas pernas não voltarão a conduzir-me até ti.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Sobre o peso



Vivo numa leveza pesada.
Sinto-me leve, serena, mas há um peso que não me deixa viver completamente e sorrir sem depois chorar.
O peso do tempo, o peso do amor, o peso da partida, o peso da mudança. Tudo tão leve, na verdade, porque são as verdades imutáveis da vida. E eu, ser vivo neste planeta, não consigo contornar estas ubiquidades. Estão sempre aqui, lá, acoli, e eu não posso fugir. Os dias vão passando e a mudança virá, como uma onda que me leva para outra margem, ou para me afogar, de vez. Sinto-me leve e frágil perante estas mil ondas que me deixam sempre ofegante e em desespero. A angústia consome-me.  O peso esmaga toda a minha leveza. Como uma pena, escrevem-me na areia, enterram-me, atiram-me ao ar, e voo, voo, e não volto. Mas eu só quero voltar. Só quero voltar a sentir o amor, o toque das tuas mãos sobre a minha pele fria. Só quero voltar ao abraço da minha mãe. Só quero voltar à casa lá no sul do país e apanhar caracóis no quintal entre mil e um risos de crianças. Só quero voltar a sentir a plenitude de um ser harmonioso. Agora há sempre fantasmas, fantasmas com corpos, que se deitam sobre mim enquanto durmo, e acordo sempre pesada.  O agora será outro agora amanhã. E não sei se será mais leve, ou mais um peso se deitará sobre mim

domingo, 6 de janeiro de 2019

Mais uma texto sobre o tempo

22-11-2018

Enquanto escrevi esta data, um pensamento veio-me à cabeça, que me faz doer as orelhas. Um pensamento que, na verdade, nunca me abandona. está sempre cá, a assombrar-me os gestos, mas de vez em quando vem com esta sensação que me faz doer o corpo. Esta verdade absoluta incontornável e dolorosa. Que o tempo me engole todos os dias e logo eu, que tento agarrar cada momento e mantê-lo assim, nos meus braços. Um dia vou reler este texto, que escrevi com os meus tolos 21 anos, com cabelo grisalho e rugas no rosto. Porque me aflige tanto? Porém, pergunto-me, onde estarei, o que terei, (com) quem serei. Terei-me encontrado? Serei um ser cheio?
Estranho, porque iria começar este texto na tentativa de escrever uma sensação maravilhosa, uma sensação de um todo, de uma harmonia total. Esta sensação de não ter medo, em que o meu corpo harmoniza-se com o que me envolve. Aquela voz que me sussurra, que me incomoda a todo o instante, desaparece, dando lugar apenas ao esplendor, à observação, ao sentir. Parece que o meu ser desaparece, ou intensifica-se. Não sei ainda, não sinto isto assim tantas vezes para chegar a uma conclusão satisfatória e verosímil. No entanto, sinto-me bem. Mas rapidamente fico mal. Basta escrever a data de hoje para sentir todo o peso do tempo para esta bela sensação desaparecer. E logo um pensamento que esmaga o meu ser, como uma mosca, das várias que já esmaguei com a palma da minha mão. Eu sou o tempo para uma mosca, e sou a mosca.
Porque é que as pessoas se vão embora? Porque é o tempo as leva de mim? Como é que eu lido com o que elas deixaram? Porque é que há memórias que se tornam num passado distante indiferente, e outras são tão dolorosas.
Escrevo isto enquanto atravesso um país, que pouco conheço, em busca de abraçar um ser humano que não quero nunca perder e criar memórias que, lá está, serão só memórias.
Gosto mais da tua voz,
                 do que o som dos pássaros
  pela manhã,
e isso diz bastante
      do quanto meu coração cresceu,

desde a primeira vez que te ouviu.

Arrependimentos

Acho que nasci com o coração na garganta,
perto da boca.
Falo, grito, choro,
como se o amor me sufocasse, a cada som da minha voz.
E todos os dias corta-me mais o ar,
como se se enchesse um balão no esófago,
e dói tanto.
enche-me os pulmões de ar,
sufoco,
e morro nas minhas próprias mãos.
Sinto-me vazia.
Sufoco-me nesta ausência de palavras e tempestades no meu corpo. Acordo, adormeço, e entre estas duas ações, acho que morro. Em gestos lentos para me levantar, em passos rápidos com esperança de chegar, mas eu sou estanque. Morri nos interstícios da busca para me encontrar. Respiro sem vida. Nada dói,
nada alegra.
Caminho como um fantasma que flutua, observando os outros, desejando ser outros. Ah, como eu gostava de ser outro! Poder divertir-me sem pensar, poder pensar sem doer, poder rir sem pensar que vou depois entristecer. Parece que me foi destinada uma tristeza crónica, escondida por trás da epiderme, que de vez em quando se abre em feridas.
Não sou doente, só apenas consciente.
Podera eu olhar para as flores sem pensar no meu inevitável desaparecimento. E o mundo deixará de existir.
Eu só quero amar. Amar até me doer a respiração e sentir as vibrações da vida. Que os meus gestos não sejam só para mim, mas para serem vistos, amados.
Gostava de escrever sobre o meu coração que dói, mas não dói. Só sinto a vida através das flores, das árvores, dos olhos que me fitam, das mãos que me tocam.
E volto ao silêncio das paredes da minha casa,
e morro mais uma vez,
todos os dias.

Poema do Início do Amor

Como te dizer,
que os teus olhos gritam a minha salvação
contra à dor dos anos,
à dor da minha existência,
à agonia do meu ser.

Como te dizer,
que o som dos pássaros
são-me silêncio
à tua voz.

Como te dizer,
que o vidro da minha pele
se parte ao teu toque,
e deixo de pensar no nosso fim,
Apenas num amor sereno.

Film Review: Roma de Alfonso Cuáron

Segue-se uma review que escrevi sobre o filme "Roma", de Alfonso Cuáron, espero que vos agrade:
I wrote a review about the movie "Roma" by Alfonso Cuáron, I hope it pleases you:
Roma, título que poderia ser interpretado como a palavra Amor ao contrário, por este estar tão ténue e simplesmente retratado, como numa pequena canção de embalar e numa sessão familiar no sofá. Um filme de extrema sensibilidade, em que vamos seguindo os pequenos gestos, os longos silêncios, a beleza da infância e a amargura constante através de uma cinematografia brilhante.
Um filme que quase parece um livro, ou até mesmo um poema, em que vamos lendo pormenorizadamente cada gesto, cada afecto.  A pouco e pouco, as paisagens, as personagens e o enredo vão-se revelando, tenuemente, e vamos conhecendo a realidade de um México nos anos setenta.
Primeiro, é-nos apresentada a personagem Cleo, de uma ingenuidade e inocência tremendas, que trabalha como criada e ama numa família de classe média e alta neste México pobre, violento, e de tamanha desigualdade social. Estas afirmações vão-nos sendo demonstradas discretamente, como as casas degradadas, os cartazes políticos, as favelas, e até mesmo pela diferença entre Cleo e a família burguesa para qual esta trabalha. É ela que cuida, que mantém, que limpa uma casa que nunca poderá ser sua nem ter sequer uma casa que se assemelhe. Porém, neste seio familiar, Cleo vive num amor simples e subtil, quase escondido, como o pó nas teclas pretas de um piano. Tímida, calada mas com uma generosidade anormal, ela abraça estas crianças como suas fossem, cantando-lhes para adormecer, para acordar, e que, na verdade, vive quase somente para elas e para esta família.
Um filme que retrata a fragilidade da vida, como sendo algo extremamente natural na existência. Vemos isto através do sismo, que quase mata um bebé recém-nascido numa incubadora, no incêndio repentino durante uma festa, e numa das mais belas cenas do filme, em que Cleo entra no mar para salvar as crianças. Nesta cena, a câmara foca apenas Cleo, numa serena agonia por não saber nada, e em que se ouve somente o som das ondas e do mar, que poderiam engolir qualquer corpo em toda a sua fragilidade imutável. Num abraço conjunto e entre lágrimas, Cleo demonstra a sua vulnerabilidade mas também a sua coragem.
Além de tudo isto, devo também realçar um tema crucial neste filme: sobre as mulheres que moldaram Cuáron, pelas suas próprias palavras. A sua mãe e a sua ama. Duas mulheres abandonadas, sozinhas, que se unem por esta incontornável solidão: "Lembra-te, nós, mulheres estamos sempre sozinhas" diz a patroa à sua criada. Prestes a divorciar-se do pai dos seus filhos, que acaba por desaparecer quase por completo do enredo, a mãe tenta lidar com esta solidão irremediável, unindo os seus filhos a si. E, por outro lado, Cleo, que engravida de um homem que julgava que a amava, e, imersa numa ingenuidade, acaba também por ser abandonada e até desprezada.
Um filme autobiográfico, de uma extrema beleza, em que a câmara funciona como um observador silencioso e atento, com a intenção de retratar a doce infância, mas também toda a dor que esta carrega. Porém, o que retiro mais deste filme é, sem dúvida, um amor constantemente presente, apesar de toda a tristeza e amargura ubíquas. É magnífico.
EN
Roma, title that could be interpreted as the word "Amor" (Love) backwards, for this being so tenuous and simply depicted, as a short lullaby and in a family session by the sofa. A movie with an extreme sensibility, in which we follow the small gestures, the long silences, the beauty of infancy and the constant bitterness through a brilliant cinematography.
A movie that looks almost like a book, or even a poem, in which we read closely each gesture, each affection. Gently, bit by bit, the landscapes, the characters and the story are revealed, tenously, and we get to know the reality of Mexico during the seventies.
First, the character Cleo is presented, featured of tremendously naiveness and innocency. She works as a maid, servent and nanny in a high-middle class family in this poor, violent and with paramount social differences Mexico. This affirmations are discreetly showed, such as the degraded houses, the political posters, the favelas, and even in the differences between Cleo and the burgoise family for whom she works. She is the one who takes care, that maintains, that cleans a house that could never be hers or even a house that could be similar to this one. However, in this family, Cleo lives in a simple and subtle love, almost hidden, like the dust on the black keys of a piano. Shy, quiet and silent, but with an unusual  generosity, she hugs these children like they were their own, singing for them to fall asleep, to wake up and, we could say, she almost lives for them and for this family.
A movie that depicts the fragility of life as being something extremely natural in existence. Through the earthquake, that almost kills a newborn in an incubator, a sudden fire during a festivity, and in one of the most beautiful scenes of the movie, in which Cleo goes into the sea to save the children. In this scene, the camera only focus Cleo, in a serene agony for not knowing how to swim, and in which only the sounds of the sea and the waves are listened, that could swallow any body in it's immutable fragility.  In a united hug and between tears, Cleo shows her vulnerability but also her courage.
Besides all this, I must also enhance a crucial theme in this movie: about the women that shaped Cuáron, by is own words. His mother and his nanny. Two abandoned women, alone, that unite by this unavoidable solitude: "Remember, we, women are always alone", says the mistress to her maid. On the one had, almost getting divorced from the father of her children, that actually disappears almost from the entire story, the mother tries to handle with this irretrievable solitude, uniting her children to her. And, in the other hand, Cleo, that gets pregnant by a man that she thought that loved her, and, submerse in a naivity, ends up also abandoned and despise.
A self biography, of an extreme beauty, in which the camera works as a silent and  attentive observer, with the intention of portraing the sweet infancy, but also with all the pain that it carries. However, what I take from this movie is, undoubtedly, a constant present love, besides all the ubiquitous sadness and bitterness. It's magnificent.