sábado, 5 de março de 2016

Tempo fugaz

Sempre gostei de me sentar na cadeira de madeira velha, com os estofos as descoserem-se, e ouvir as histórias da minha avó. Ouvia as palavras, olhava  para as suas rugas que lhe rasgam o rosto, como se cada uma contasse uma história, como se cada uma fosse uma ferida dos longos anos vividos. Ela fala-me da sua mãe, que tocava piano de olhos fechados e com um sorriso nos lábios, e que as pessoas lá fora batiam palmas, e como ela usava chapéus diferentes, um para cada música que tocava nas teclas. E sempre me disse que eu tinha os olhos e o nariz da sua mãe, e os dedos longos e a sua alminha bondosa. E cresci a ouvir que sou olhos grandes, nariz pequeno, dedos longos, a rapariga do chapéu e do barrete, a moça sensível e generosa. Mas nunca me disseram que a minha vida seria uma batalha devido a esta alma caridosa. E eu adormecia a ouvir as músicas da bisavó, as palavras da avó e das suas rugas, com aquele brilhosinho nos olhos, um desejo de voltar ao passado e refazer aquelas feridas de rosto. E penso que um dia eu também terei arranhões cravados na minha face, aquela tristeza no olhar, e umas mãos sem dedos longos, apenas com pele envelhecida. Não me entristeço neste pensamento, porque é inevitável eu tornar-me assim. Este passar do tempo, que me suga a juventude, é imutável e nada posso fazer. E penso que posso fazer muito coisa. Muita coisa para olhar para o passado com o olhar da minha avó, com orgulho na voz, que abraça este presente que construiu, e ama a sua pequena família, rodeada de filhos e de netos. Mas eu nasci agora. Nasci num tempo de ingratidão, de dor, de tristeza. E todos os dias escorro uma lágrima de tristeza. De saber que nunca serei feliz como a minha avó, e que nunca fecharei os olhos, sorrindo, repleta de chapéus, e de filhos, e de netos. Que o mundo em que nasci gera sofrimento, e vivo a pensar que nunca conseguirei realizar os meus desejos, que não tenho força, que os meus longos dedos não me elevam este corpo inerte. E continuo a ouvir a minha avó e a admirar as suas rugas, os seus olhos brilhantes, a sua felicidade e força, e o mais estranho, é que não a invejo. Não invejo a sua alegria, o seu bem-estar na velhice. Fico feliz. E quando estarei na minha cama de lençóis brancos, com a pele enrugada, olhos baços, cabelos brancos mortos, lembrarei o seu sorriso, a sua voz, as suas palavras felizes e a sua coragem.

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